quarta-feira, 22 de maio de 2013

Reflexão sobre a exploração de animais como atração turística ou meio de transporte



Um único cavalo puxando uma charrete com dois condutores e quatro passageiros, no verão escaldante de Aswan (Egito). (Foto: Divulgação)
Um único cavalo puxando uma charrete com dois condutores e quatro passageiros, no verão escaldante de Aswan, no Egito. (Foto: Divulgação)
Quando eu era pequena, costumávamos passar as férias de inverno em Poços de Caldas (MG) ou Águas de Lindóia (SP). Como, nesse período, a piscina do hotel permanecia inutilizável, em Águas de Lindóia, a atividade mais aguardada do dia era quando saíamos para andar a cavalo. Em virtude de esta atividade se repetir todos os dias, era como se eu tivesse o “meu” cavalo e, minha irmã o “dela”. Com os meus oito, nove anos, achava normal e não via nada de mal que cavalos fossem usados para este fim. Já em Poços de Caldas, fazíamos passeios de charrete, e, embora eu fosse ainda mais criança (tinha uns cinco, seis anos), lembro-me que o cavalo que puxava a charrete causava-me pena, não parecia feliz. No verão, a situação era ainda pior, pois passávamos as férias todas em Santos, e era inevitável uma visita ao Aquário ou ao show de golfinhos. No primeiro atrativo, ficava preocupada ao ver o pouco espaço reservado aos peixes e, ainda mais angustiada, com a minúscula piscina destinada à moradia do leão-marinho, que tem como habitat natural toda a extensão dos oceanos. No show de golfinhos, a situação não era nada melhor, os pobres animais eram obrigados a mostrar os truques que haviam aprendido em troca de… comida! Além disso, lá também, a piscina era minúscula e a água visivelmente suja, o que tornava o cativeiro ainda mais cruel.
Mais tarde, aos 15 anos, em visita à Flórida, tive contato com o alto nível dos parques aquáticos americanos: água transparente, piscinas grandes, “todo o conforto necessário”… O locutor do show nos tranquilizava dizendo que a orca Shamu não sentia falta de seu meio ambiente natural porque era muito bem tratada, tinha alimentação farta e gostava de brincar com os monitores…. era feliz. O mesmo discurso se ouvia em relação aos tubarões e golfinhos do parque. Na época, não indaguei muito, mas anos mais tarde, depois de participar de experiências de observação de espécies da fauna marinha, em liberdade, em alguns países da América do Sul, comecei a duvidar que um animal que deveria estar nadando com outros indivíduos da sua espécie, numa extensão de quatro mil quilômetros, pudesse estar feliz numa piscina de uma parque aquático, por mais moderno que este fosse, ou mesmo em Roatán (Honduras), onde dizem para os turistas que os golfinhos vivem em liberdade, mas, na realidade, permanecem confinados num trecho de mar e de lá não podem sair, o que também constitui cativeiro, ainda que devidamente disfarçado.
Lembro-me de minha primeira viagem à Espanha, aos 17 anos, quando não quis perder a experiência de ver uma tourada, sobre a qual, francamente, eu tinha somente uma vaga ideia. O espetáculo cruel me levou ao imediato arrependimento. Hoje, muitos anos mais tarde, por mais que as touradas ainda não sejam proibidas no país, pelo menos, o órgão oficial de turismo, há um bom tempo, teve o bom gosto de proibir qualquer menção a esse espetáculo bárbaro, em todas suas campanhas de marketing. No entanto, a Festa de São Firmino, que ocorre anualmente em Pamplona, no mês de junho, e que se tornou célebre a partir do romance “O sol também se levanta”, de Ernest Hemingway, continua atraindo multidões de jovens do mundo todo, que passam as noites embriagando-se para, no dia seguinte, lançar-se numa corrida irresponsável na frente de touros: tradição que, fatalmente, termina com algumas mortes e feridos, entre homens e animais. Há muitos que defendem a perpetuação dessas tradições, especialmente, das touradas, cuja origem remonta aos fenícios. Todavia, se usássemos a mesma lógica apoiada somente na tradição, também deveríamos manter outros costumes igualmente bárbaros, como o de incendiar pessoas suspeitas de heresia, assim como aconteceu com o filósofo/teólogo Giordano Bruno… É isso realmente o que queremos em pleno século XXI?
Em 1991, em viagem ao Iêmen, tive a oportunidade de andar de camelo pela primeira vez na vida, e assim como a experiência com os cavalos de Águas de Lindóia, o fato que camelos fossem obrigados a “trabalhar” para encantar os turistas me pareceu normal. Logo depois, em outra viagem, tive a opção de escolher se adentrava Petra, na Jordânia, a pé ou de camelo. Certamente, a experiência de camelo pareceu-me mais “autêntica”, assim como também optei por subir ao Monastério, deste mesmo sítio arqueológico, no lombo de um burro, embora eu pudesse perfeitamente ter realizado o trajeto a pé. Hoje, mais sensível que àquela época, posso até compreender quando esses animais são a única possibilidade de transporte para tribos nômades, cuja vida consiste em deslocar-se de um ponto a outro, em meio ao deserto, mas qual o sentido de trazermos camelos para Natal (RN), por exemplo, com o único objetivo de suscitar a curiosidade dos turistas? E o que não dizer dos búfalos que vivem na ilha de Marajó (PA)? Além de comer a carne e produtos produzidos com o leite desses animais, os turistas também querem viver a insólita experiência de andar em charretes por eles puxadas. A julgar pela cara do animal retratado na foto que acompanha este artigo, a experiência é positiva somente para os turistas e para os que ganham dinheiro com isso.
Todavia, quando se acha que já se viu de tudo em relação à crueldade dos animais, associada ao turismo, sempre há surpresas: em Istambul, duas décadas antes de a cidade virar cenário de novela, indo de táxi do aeroporto para o hotel, qual não foi minha surpresa, quando vi um homem atravessando a rua com um urso (!) todo acorrentado e dopado. O taxista nos informou que ciganos capturavam os animais nas montanhas, arrancavam seus dentes e andavam com os animais pela cidade para que turistas pagassem para tirar fotos com eles. Aquilo me chocou imensamente, e precisei mergulhar intensamente no legado cultural da cidade para amenizar aquela primeira impressão negativa. Por fim, acabei esquecendo…
A gota d”água que transbordaria o copo se deu somente quando eu pesquisava possíveis trilhas para Machu Picchu, nas páginas de uma edição da revista Caminhos da Terra, e deparei-me com uma foto que fazia uma denúncia terrível: via-se um homem de fisionomia indígena, bastante curvado, em função de todo o peso que levava em suas costas (comida, utensílios e barracas para os turistas), ao lado dele, um burro, também curvado e visivelmente sobrecarregado e extenuado; um pouco mais adiante, lá estavam eles, os mochileiros, felizes e satisfeitos, desfrutando da aventura de percorrer a trilha inca, levando somente uns poucos quilos em suas mochilas. Imediatamente, desisti de realizar a trilha inca, pois preferia perder esta experiência, e chegar até Aguas Calientes/ Machu Picchu de trem/ônibus, a explorar esses seres humanos e animais. Os indígenas fiquei sabendo mais tarde ganhavam algumas dezenas de dólares para levar, por três dias, em suas costas, a carga destinada ao conforto dos turistas; os burros, por sua vez, ganhavam somente o direto à comida e à água.
Entendo que muitas comunidades autóctones estejam sendo subjugadas pelo turismo e por alguns turistas. Mas essas pessoas podem dizer “não”, podem unir-se, procurar um advogado, outras fontes de renda, etc. Os animais não têm recurso algum, são escravizados e ponto final. Se, por acaso, em função do sofrimento ao qual são submetidos, atacam, prontamente apanham ou são abatidos.
É sabido que depender exclusivamente da atividade turística constitui um equívoco e traz sérias consequências; para os animais, contudo, a situação torna-se ainda mais grave, sem dizer que estes últimos não escolheram esta “profissão”. No ano passado, num dos vários festivais anuais de cinema árabe, em São Paulo, pude assistir ao filme “Depois da Batalha” (Baad el Mawkeaa, 2012), do diretor egípcio Yousry Nasrallha, que narra alguns dos impactos, na cidade do Cairo, passado o entusiasmo da revolução popular, ocorrida um ano antes. Um dos cenários mostrados pelo diretor revela justamente o destino que coube a cavalos e camelos. Em suas palavras, “os turistas desapareceram, e os cavalos, camelos e seus condutores, que moravam próximo às pirâmides, ficaram morrendo de fome a ponto de os camelos serem vendidos para açougues”.
Muito se fala em busca da sustentabilidade e turismo sustentável, mas pouco se tem indagado sobre os “atores” mais fracos da atividade turística: os animais. Hoje, se por um lado, abomino circos que exploram animais e parques aquáticos que, literalmente, fazem espetáculo à custa do sofrimento dos animais indefesos, por outro, ainda me sensibiliza que comunidades locais tenham no oferecimento de passeios com animais sua única possibilidade de sobrevivência, como no caso de extratos humildes da sociedade egípcia, porém, como se assegurar que esses animais, de fato, recebem o tratamento e a atenção que merecem? É uma questão muito difícil: quantas horas, por dia, um camelo pode “trabalhar”, levando turistas em passeios de um lado a outro da área das pirâmides de Gizé, ou qual é o limite de “trabalho”, sob o sol escaldante do Egito, para que um cavalo possa puxar uma charrete com quatro passageiros e dois condutores, em Aswan, no sul do país? Como seria possível estabelecer este limite entre o que é ético/suportável para um animal e o que causaria um extremo sofrimento para esses seres que não têm como escapar dessa cruel realidade, não recebem salário, não recebem décimo-terceiro, não têm férias, não têm sindicatos, não têm direito à greve…. Quando seres humanos trabalham somente em troca de comida e moradia, chamamos a isso de escravidão. Seria diferente com os animais? Na dúvida, há alguns anos, passei a boicotar qualquer atividade turística que envolva animais, seja como atração turística ou como meio de transporte.
Sei que muitas pessoas acham essas atividades normais. Eu também achava quando ficava esperando, ansiosamente, para andar a cavalo, nos invernos transcorridos em Águas de Lindóia, mas, hoje, já não acho mais.
Finalizo, propondo um paradigma de comparação: após a Revolução Industrial, crianças muito pequenas trabalhavam como adultos várias horas por dia, sem férias, sem fins de semana, sem direitos garantidos, sem tutela alguma. À época, a burguesia inglesa achava isso muito normal, entretanto, hoje, certamente ninguém mais acharia. Enquanto isso, os animais continuarão aguardando a nossa benevolência…
* Claudia Astorino é docente do curso de Bacharelado em Turismo, da UFSCar Sorocaba (claudia.astorino@ig.com.br)

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